sábado, 5 de abril de 2008

Crônicas


Há alguns anos aconteceu um fenômeno físico, conhecido como refração, no vidro de uma janela de uma casa em Ferraz de Vasconcelos, município da Grande São Paulo, em que a mancha, na interpretação de algumas pessoas, era a imagem da Virgem Maria. Confesso que eu nunca consegui ver na mancha a imagemque diziam existir, mas isso é passado. O que houve com a janela? O que houve com a romaria que faziam? Na época escrevi uma crônica sobre o assunto e, para relembrar o ocorrido, a publico aqui.





CRÔNICA DA BOA IDADE
Julho 2002

Nossa Senhora da Janela

Os profetas fazem o que? Profetizam. E se hoje os profetas andam sumidos, a história registra bons exemplos da ação deles.
Sem dúvida nenhuma sua presença mais marcante acontece nos episódios religiosos. De todas as religiões, no mundo inteiro. Algo de místico, sobrenatural e divino o dom de profetizar. E as profecias religiosas não só eram, como ainda são as de maior impacto em nossa sociedade. Exemplos?:
A vinda do messias, que realmente veio, para uns; e virá para outros.
A volta do messias, que também já veio para uns; e acontecerá ainda, para outros.
Antecipando a chegada do salvador, os profetas anunciaram episódios relacionados ao nosso dia-a-dia para que possamos identificar o momento e nos certificar que a época certa da chegada, ou da volta do messias está acontecendo.
Uma das características mais importantes da época da espera é o aparecimento de falsos messias e muitas religiões clamando para si, o direito de ser a escolhida por deus. Se assim for a verdade, não deve demorar a chegada ou a volta do representante do criador, afinal o que tem de religião e falsos messias por aí, é brincadeira. .
O mundo globalizado, tecnológico e racional vai seguido seu caminho e atrás dele vai o mundo religioso, ritualista e em muitos casos, irracional. Não temos dúvida da importância dos cuidados espirituais por parte do homem. Mas a necessidade de um referencial e de um apoio divino está tão grande, que nós, pobres humanos não sabemos mais a quem recorrer para nos livrar dos malefícios ou prejuízos causados pelo desenvolvimento mundial e pelos acontecimentos normais do cotidiano. Praticamente todo dia pessoas aparecem dizendo ter sido escolhidas pelas forças divinas e superiores e passam a ser arautos de uma verdade. Aparições de figuras bíblicas ou mesmo de recém-mortos tornam ponto de romaria os locais onde aparecem. Alguém diz que viu, ou vê alguma coisa, e aí uma multidão de necessitados vai atrás para ser beneficiado com um pouco daquela réstia de bem-aventurança divina. São os necessitados de orientação espiritual e religiosa que formam essas aglomerações. Acreditam naquilo que aparece pois em mais nada tem no que acreditar. E também a velha prática de acender uma vela para deus e outra para o diabo.
Um pedaço de vidro numa janela é agora a moda do momento no Brasil. Que bom que o Brasil desta vez entrou no circuito das figuras que aparecem. Que bom que a virgem Maria apareceu aqui, dizem uns. Que tolice dizem outros.
Na verdade esses fenômenos acontecem em todo o mundo e são, tão somente, interpretações diversas dos estímulos que recebemos.
Nossos sensores são excitados pelos mesmos estímulos, mas cabe à nossa experiência e sabedoria interpreta-los de forma correta, e também da forma mais útil para nós mesmos. Daí a necessidade de apoio espiritual detectado nessas pessoas que se dizem abençoados por terem interpretado uma mancha no vidro como a imagem de nossa senhora.
No começo do século passado o médico suíço Rorschach elaborou um teste de personalidade com manchas de tinta, através das quais as pessoas interpretavam aqueles estímulos. Até hoje o teste é utilizado e é uma das mais bem arranjadas ferramentas para se saber como se estrutura a personalidade de um indivíduo.
No caso da nossa senhora da janela de Ferraz de Vasconcelos em São Paulo, a história é outra. O problema não é individual, é sócio-cultural. É objeto de estudo de antropólogos e sociólogos. Que bom se as pessoas não precisassem de uma mancha numa janela para acreditar em deus. Fé é um processo interno, de nada adianta aparecer a própria virgem Maria e o indivíduo não acreditar nela. Mas acreditar sem que ela exista, é a mesma coisa que acreditar em saci pererê e boitatá. Quem os viu que conte...

Nenhum comentário: